Queimadura ocular: o que fazer e como tratar

Última atualização em 14 de fevereiro de 2024 por

As queimaduras oculares são emergências oftalmológicas e a intervenção rápida é fundamental para minimizar a quantidade de tecido danificado. Podem ser classificadas em dois tipos: térmicas e químicas. O dano tecidual causado por agentes térmicos acomete com mais frequência os tecidos anexos ao globo ocular devido ao reflexo de fechar os olhos e, quando acomete diretamente o globo, a lesão tende a ser superficial. Esse tipo de queimadura é reduzida rapidamente no momento em que o contato com a fonte de energia térmica é removido. Os agentes térmicos mais comumente associados a acidentes incluem chamas em incêndios, água fervente e óleo de cozinha quente.

As queimaduras químicas geralmente apresentam dano tecidual mais intenso,  levando a lesões mais profundas, pois o agente causador muitas vezes permanece mais tempo em contato com a superfície ocular. Nesses casos, é imperativo que o tratamento seja iniciado o mais rápido possível. A maioria dos acidentes que levam a esse tipo de lesão ocorrem com materiais do dia-a-dia como, por exemplo, detergentes e produtos de limpeza, amônia, água sanitária, fertilizantes, cimento, cal e ácidos industriais. Os fogos de artifício e alguns explosivos podem causar lesões químicas e térmicas simultaneamente.

Existem poucos dados em relação à epidemiologia das queimaduras oculares, porém alguns artigos trazem informações alarmantes. Esse tipo de lesão é o segundo mais comum, ficando atrás apenas dos corpos estranhos oculares. As crianças são comumente mais envolvidas nesse tipo de acidente. E os acidentes com álcali são mais comuns do que aqueles com ácido, sendo a amônia o composto mais frequentemente associado.

Como ocorre a queimadura ocular?

Os danos que serão causados nas estruturas oculares dependem de vários fatores como pH, concentração, volume, temperatura, força do impacto, interação e tempo em que ficou em contato com o tecido ocular.  Substâncias alcalinas geralmente sao lipofílicas, causam saponificação dos ácidos graxos da membrana celular levando à ruptura e morte celular. Tendem a penetrar mais nos tecidos, causando necrose liquefativa. Ao passo que os tecidos superficiais vão necrosando, o agente químico penetra ainda mais, perpetuando o dano. Os agentes ácidos causam rápida coagulação das proteínas teciduais limitando assim a propagação da lesão.

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Como proceder na vigência de uma queimadura ocular?

Primeiramente deve-se avaliar e tratar lesões que ofereçam risco de morte para o paciente e também garantir a segurança da equipe que fará o atendimento. Após essa avaliação inicial e estabilização do paciente, deve-se compreender como foi a exposição ao agente causador e se será necessária descontaminação do paciente. Em alguns casos é necessário irrigar outras partes da face e corpo e até mesmo remover e descartar vestimentas.

Após esses cuidados deve-se iniciar a irrigação ocular para remoção do agente causador da lesão. Durante esse processo é importante coletar dados sobre o histórico de saúde, medicamentos em uso, alergias, último horário de alimentação e mecanismo do trauma. A irrigação deve ser realizada preferencialmente com ringer lactato ou solução salina balanceada (BSS – balanced saline solution) até que se atinja pH entre 7.0 a 7.2. Em locais onde não há disponibilidade dessas soluções, pode-se utilizar soro fisiológico ou até mesmo água.  O soro fisiológico, apesar de amplamente utilizado, é hipotônico em relação ao humor aquoso e leva a maior edema de córnea.

O uso de soluções hipertônicas é a melhor escolha, pois aumenta a pressão osmótica mobilizando a água e dissolvendo os agentes corrosivos para fora do tecido corneano. A solução tampão borato (Cedderroth eye wash – Cedderoth Industrial Products) e a Difoterina – uma solução hipertônica anfotérica- são amplamente utilizadas na Europa como agentes de primeira linha para neutralizar com segurança álcalis e ácidos. Exceto no caso dessas soluções, jamais devemos irrigar os olhos com qualquer produto na tentativa de neutralizar o agente causador, pois podem ocorrer reações químicas ou térmicas diversas, piorando a injúria inicial.

A irrigação ocular deve ser iniciada do canto nasal para o temporal, solicitando ao paciente que pisque e mova os olhos em diferentes posições, tomando sempre o cuidado de limpar os fórnices. Durante todo o processo de inspeção e irrigação é importante atentar para a necessidade de anestesia tópica ou até mesmo sedação.

Após a irrigação, é necessário avaliar a acuidade visual, pressão intraocular e biomicroscopia para determinar qual o grau de lesão e quais os tecidos acometidos. Sempre devemos corar a superfície com fluoresceína para identificar a extensão do dano e atentar para sinais de perfuração do globo ocular. Materiais particulados e tecido necrótico também devem ser removidos.

Existem vários tipos de classificação para queimaduras oculares que guiam o tratamento e indicam o prognóstico visual. A mais recente é a classificação proposta por Dua em 2001 (tabela 1).

Tabela 1: Classificação de Dua para queimaduras oculares.

GrauPrognósticoAcometimento LimbarEnvolvimento conjuntival
IMuito bomSem envolvimento limbar0%
IIBom≤ 3 horas de relógio≤  30%
IIIBom3-6 horas de relógio30-50%
IVBom – reservado6-9 horas de relógio50-75%
VReservado – ruim9 a < 12 horas de relógio75-100%
VIMuito ruimEnvolvimento limbar completo100%

Tabela 2: Classificação de Roper Hall para queimaduras oculares.

GrauPrognósticoCórneaConjuntiva e Limbo
IBomDano epitelialSem isquemia limbar
IIBomHaze corneano, é possível avaliar detalhes da câmara anterior< 1/3 de isquemia limbar
IIIReservadoPerda epitelial total, haze estromal, difícil avaliar detalhes da câmara anterior1/3 a 1/2 de esquemia limbar
IVRuimCórnea opaca, impossível avaliar detalhes da câmara anterior> 1/2 de isquemia limbar

Durante os primeiros sete dias após o acidente, o principal objetivo do tratamento é controlar a inflamação, promover a reepitelização da superfície ocular e aumentar a produção/ reduzir a perda de colágeno.  Casos leves devem ser tratados com antibioticoterapia podendo ser utilizada pomada de eritromicina ou colírios a base de quinolona, além de colírio lubrificante sem conservante nos intervalos, conforme necessidade.

Casos moderados a graves necessitam cuidados intensivos com esteroides tópicos, cicloplegia, vitamina C tópica e/ou oral e tetraciclinas sistêmicas.  A vitamina C é um cofator na síntese de colágeno e auxilia na redução de perfuração e melting corneano. A doxiciclina atua reduzindo o efeito das metaloproteinases que podem degradar o colágeno tipo I. Devemos evitar antibióticos como gentamicina e tobramicina devido à sua toxicidade corneana. Em casos de pressão intraocular elevada, é necessário iniciar agentes hipotensores.

O debridamento cirúrgico deve ser realizado o mais precocemente possível pois tecidos necróticos perpetuam inflamação, servem como substrato para infecção e inibem a epitelização. Lesões muito graves podem necessitar de terapias adjuvantes como soro autólogo, plasma rico em plaquetas e até mesmo recobrimento precoce com membrana amniótica. A membrana amniótica rapidamente restaura a superfície conjuntival,  reduz a inflamação na região limbar, fornece maior conforto para o paciente e previne a formação de simbléfaro e neovascularização da córnea.

Em fases mais tardias, nos casos em que houve lesão extensa do limbo, pode-se realizar transplante de limbo proveniente do olho contralateral, fornecendo células-tronco e preparando a superfície epitelial para a ceratoplastia. Quando há extenso acometimento dos anexos oculares, é importante proceder com cirurgia reparadora.

Resumo do tratamento para os diferentes graus de lesão (pela classificação de Roper Hall)

Grau I

  • Antibiótico  tópico a cada 6 horas
  • Acetato de prednisolona 1% a cada 6 horas (com regressão rápida)
  • Lubrificante sem conservante conforme necessidade
  • Se dor intensa, considerar cicloplégico como ciclopentolato ou tropicamida 1% a cada 8 horas

Grau II

  • Antibiótico tópico a cada 6 horas
  • Acetato de prednisolona 1% a cada 6 horas (com regressão rápida)
  • Cicloplégico de longa ação como atropina
  • Vitamina C 1g dia via oral e/ou tópica (ascorbato de sódio 10% a cada 1 h enquanto acordado)
  • Doxiciclina 100mg a cada 12 horas (evitar o uso em crianças)
  • Lubrificante sem conservante conforme necessidade
  • Avaliar debridamento cirúrgico

Grau III

 – Tratamento utilizado para grau II

  • Considerar membrana amniótica

Grau IV

– Tratamento utilizado para grau II e III

Mesmo após todos os cuidados, o paciente com queimadura ocular precisa ser avaliado no longo prazo, pois pode evoluir com glaucoma, olho seco grave, e alterações palpebrais como entrópio e ectrópio cicatricial.