O Brasil é o segundo país no mundo em número de transplantes de órgão, segundo o Ministério da Saúde. A fila de espera por um transplante de córnea também tem registrado um aumento significativo ao longo dos anos. Em 2019, eram cerca de 12 mil pessoas aguardando pelo procedimento e, atualmente, esse número mais que dobrou, chegando a 25.507 pessoas, de acordo com os dados do Sistema Nacional de Transplantes (SNT).
Entretanto, a taxa de rejeição do órgão geralmente varia em torno de 15% em muitos centros de transplante em todo o país, a depender da gravidade do quadro. Mesmo que os pacientes tenham a oportunidade de recuperar a visão por meio de um novo transplante, as probabilidades de êxito em cirurgias subsequentes diminuem a cada procedimento. A córnea é um tecido complexo e altamente especializado, e o sistema imunológico do receptor pode às vezes reconhecê-la como um corpo estranho, desencadeando uma resposta de rejeição. Isso pode levar a sintomas como vermelhidão, inchaço, dor e comprometimento da visão.
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Em alguns casos complexos, uma solução possível é a ceratoprótese, também conhecida como córnea artificial. O modelo mais adotado em todo o mundo é a ceratoprótese de Boston, que pode ser customizada para se ajustar à córnea do próprio paciente. A importação dessas próteses geralmente ocorre por meio de projetos de pesquisa ou de maneira humanitária, a fim de atender às necessidades dos pacientes que requerem esse tratamento. No entanto, é importante observar que há desafios legais associados ao registro desse tipo de tratamento junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Surgiu assim, o interesse por desenvolver uma prótese 100% nacional. Mais moderna e composta por material biocompatível, polímero de acrílico (PMMA) e titânio 3D impresso, a prótese brasileira tem como diferenciais o custo reduzido e a fácil adaptação à córnea danificada do próprio paciente, dispensando doadores. Embora o invento ainda não tenha sido aprovado pela Anvisa, os responsáveis indicam que seu uso pode representar um grande avanço na qualidade de vida das pessoas.
De acordo com Glauco Aquino, Médico Oftalmologista do time médico da Eyecare Health, “a córnea artificial é uma ótima alternativa para casos selecionados, e pode permitir a reabilitação parcial da visão para pacientes com baixo prognóstico em caso de transplante com um tecido humano. É uma solução inovadora e muito importante por ser nacional e possivelmente aumentar a disponibilidade para os pacientes que necessitam a prótese, já que hoje não temos um modelo feito no país e a logística e custo de importação são barreiras para as próteses estrangeiras”.
Liderado pelos docentes Paulo Schor e José Álvaro Gomes Pereira, e pelo pós-doutorando Otávio Magalhães, o projeto visa solucionar tanto o problema da importação quanto o da rejeição. Segundo o estudo, tais próteses, capazes de se integrar perfeitamente ao tecido receptor, diminuem a possibilidade de rejeição ao transplante. São, por isso, indicadas para pessoas com histórico de múltiplas rejeições ao transplante, ou para casos em que há grande chance de isso acontecer.
Em nota enviada à imprensa, o Médico Oftalmologista Otávio Magalhães, pós-doutorando da Escola Paulista de Medicina da Unifesp e um dos líderes do projeto, explica que as chances de retenção da ceratoprótese nacional são altas, especialmente em pacientes que sofreram queimaduras químicas, insuficiência limbar e vascularização, considerados casos de alto risco para rejeição. “O olho tem um mecanismo próprio de defesa que isola quaisquer corpos estranhos. Não se trata de rejeição sanguínea, pois não há vasos sanguíneos que chegam na região. Quando há uma queimadura química ou vascularização da área, o sistema imune do paciente identifica a córnea estranha e a ataca”, diz o pesquisador.
Segundo o estudo, pacientes que tiveram os olhos afetados por queimaduras químicas, ou mesmo por um quadro de herpes, podem chegar a fazer três ou quatro transplantes de córnea por conta da reincidência da rejeição dos órgãos. A queimadura química nos olhos pode ser causada por diversos eventos, como acidentes domésticos envolvendo líquidos quentes e uso de cosméticos. Porém, a maioria das vítimas são pessoas que sofreram acidentes de trabalho, como trabalhadores da indústria química “Pacientes assim podem fazer três ou quatro transplantes e ter rejeições, deixando cicatrizes e aumentando a vascularização, diminuindo cada vez mais as chances de sucesso da cirurgia”, relata Magalhães.
O pesquisador relaciona ainda que “em um paciente com queimadura química, por exemplo, a chance de um transplante de córnea ter sucesso é menor que 10%. Com uma ceratoprótese, porém, essa chance aumenta para perto de 60%”. Mas, os pesquisadores frisam que a ceratoprótese não substitui o transplante de córnea, e deve ser considerada como um complemento. “Ela é destinada justamente para casos em que o prognóstico do transplante de córnea é baixo. Ou seja, para uma pequena parcela dos pacientes que terá poucas chances de sucesso do transplante de córnea”, complementa Magalhães.