Ceratocone: doença ocular que afeta a córnea e altera a visão

Última atualização em 26 de outubro de 2024 por Victor

O ceratocone é uma condição ocular progressiva que afeta aproximadamente 1 em cada 2.000 pessoas, caracterizada pelo afinamento e deformação da córnea, a primeira lente natural do olho. 

Esta doença, que tipicamente se manifesta entre os 10 e 25 anos de idade, pode impactar significativamente a qualidade de vida dos pacientes quando não diagnosticada e tratada adequadamente.

Diferente de outras condições oculares comuns na idade adulta, o ceratocone tem caráter genético e progressivo, podendo afetar ambos os olhos de forma assimétrica – entenda melhor como ela funciona e como se prevenir aqui!

O que é ceratocone e como afeta a visão

O ceratocone é uma distrofia corneana não-inflamatória caracterizada pela perda progressiva da espessura e resistência da córnea, levando à sua protrusão em formato cônico. 

Esta alteração estrutural compromete a função principal da córnea, que é focar adequadamente os raios luminosos na retina, resultando em distorções visuais significativas.

Esta condição ocular se distingue de outros problemas refrativos por sua natureza progressiva e pelo comprometimento estrutural da córnea. 

Enquanto condições como miopia e hipermetropia estão relacionadas principalmente ao tamanho do globo ocular, o ceratocone envolve uma alteração biomecânica na primeira e mais importante lente do sistema óptico ocular.

Anatomia da córnea e suas alterações no ceratocone

A córnea é uma estrutura transparente composta por cinco camadas distintas, sendo o estroma a mais espessa e importante para sua estrutura. No estroma, encontramos fibras de colágeno organizadas em uma disposição específica que garante tanto a transparência quanto a resistência mecânica necessária para manter a forma adequada da córnea.

No ceratocone, ocorre uma alteração nas ligações entre as fibras de colágeno e uma redução no número de lamelas estromais, levando a um enfraquecimento progressivo do tecido corneano. 

Este processo resulta em uma diminuição da espessura central da córnea e uma consequente protrusão anterior, alterando significativamente suas propriedades ópticas.

Impactos na qualidade visual

As alterações estruturais causadas pelo ceratocone resultam em uma série de distúrbios visuais que afetam tanto a visão de perto quanto de longe, criando um impacto significativo nas atividades diárias do paciente, desde a leitura até a condução de veículos, especialmente em baixa luminosidade.

Relação com astigmatismo e miopia

O ceratocone frequentemente induz o desenvolvimento de astigmatismo irregular e miopia devido à alteração na curvatura corneana. Diferente do astigmatismo regular, onde a córnea possui meridianos principais definidos, o astigmatismo do ceratocone é irregular e mais complexo.

Esta irregularidade torna a correção visual mais desafiadora, pois os óculos convencionais nem sempre conseguem compensar adequadamente as distorções causadas pela doença. Por isso, muitos pacientes necessitam de lentes de contato especiais para alcançar uma visão satisfatória.

A progressão da doença pode levar a mudanças frequentes no grau dos óculos ou lentes de contato, sendo este um sinal importante para o diagnóstico em pacientes jovens que apresentam alterações refrativas rápidas e significativas.

Formação do cone corneano

A formação do cone corneano é um processo gradual que ocorre devido ao enfraquecimento progressivo da estrutura da córnea, principalmente em sua região central ou paracentral.

  1. Início do processo: Alteração nas ligações entre as fibras de colágeno
  2. Enfraquecimento estrutural: Redução da resistência biomecânica da córnea
  3. Afinamento central: Diminuição da espessura na região central ou paracentral
  4. Protrusão anterior: Formação gradual da projeção cônica
  5. Evolução progressiva: Aumento do cone com possível descentração

Sintomas e sinais do ceratocone

O ceratocone apresenta uma variedade de manifestações clínicas que evoluem gradualmente, podendo variar significativamente entre pacientes tanto em termos de gravidade quanto de progressão.

Manifestações iniciais da doença

Os primeiros sinais do ceratocone geralmente aparecem durante a adolescência ou início da vida adulta, manifestando-se inicialmente de forma sutil e progredindo gradualmente.

  • Visão borrada ou distorcida leve
  • Sensibilidade aumentada à luz
  • Mudanças frequentes no grau dos óculos
  • Dificuldade para enxergar à noite
  • Desconforto ocular após leitura prolongada
  • Coceira excessiva nos olhos

Progressão dos sintomas visuais

À medida que a doença progride, os sintomas visuais se tornam mais pronunciados, com aumento significativo das distorções visuais e maior dificuldade na correção com óculos convencionais, levando muitos pacientes a necessitarem de lentes de contato especiais para alcançar uma visão funcional.

Sinais de Munson e outros indicadores

O sinal de Munson, caracterizado por uma protuberância visível na pálpebra inferior quando o paciente olha para baixo, é um indicador clássico de ceratocone em estágio avançado. Este sinal resulta da protrusão corneana que deforma o contorno natural da pálpebra.

Outros sinais clínicos importantes incluem o anel de Fleischer (depósito de ferro na base do cone), estrias de Vogt (linhas verticais finas no estroma posterior) e o reflexo em tesoura na retinoscopia, que são indicadores importantes para o diagnóstico e acompanhamento da progressão da doença.

Complicações possíveis

O ceratocone não tratado pode evoluir para complicações sérias que comprometem significativamente a visão e a qualidade de vida do paciente.

  • Hidropsia aguda: Edema súbito da córnea devido à ruptura da membrana de Descemet
  • Cicatrizes corneanas permanentes
  • Perda significativa da acuidade visual
  • Intolerância a lentes de contato
  • Necessidade de transplante de córnea em casos avançados

Fatores genéticos e ambientais

O desenvolvimento do ceratocone está intimamente ligado a uma complexa interação entre fatores genéticos e ambientais, onde a predisposição hereditária se combina com elementos externos que podem acelerar ou desencadear a manifestação da doença.

Hereditariedade e predisposição genética

Estudos genéticos identificaram diversos genes relacionados ao desenvolvimento do ceratocone, com destaque para o VSX1 (Visual System Homeobox 1), responsável pelo desenvolvimento ocular e manutenção da córnea. Alterações neste gene foram encontradas em aproximadamente 4% dos casos familiares de ceratocone.

O gene SOD1 (Superoxide Dismutase 1) também desempenha papel crucial, pois sua mutação afeta a produção de enzimas antioxidantes que protegem a córnea do estresse oxidativo. Pesquisas demonstram que pacientes com ceratocone apresentam níveis reduzidos desta enzima, contribuindo para a fragilidade corneana.

Recentemente, variações no gene DOCK9 (Dedicator of Cytokinesis 9) foram associadas a formas familiares de ceratocone, especialmente em casos de início precoce. Este gene está envolvido na regulação do citoesqueleto celular e na manutenção da estrutura corneana.

Gatilhos e fatores de risco

Os fatores desencadeantes do ceratocone incluem estresse mecânico na córnea, alterações hormonais durante a puberdade, exposição prolongada à radiação UV e condições que promovam inflamação crônica ocular, potencializando o risco em indivíduos geneticamente predispostos.

Alergias e hábitos prejudiciais

A presença de alergias oculares constitui um importante fator de risco para o desenvolvimento e progressão do ceratocone, principalmente devido ao ato frequente de coçar os olhos. O prurido intenso leva ao trauma mecânico repetitivo da córnea, podendo acelerar o processo de enfraquecimento tecidual em pessoas predispostas.

O uso inadequado de lentes de contato, especialmente quando associado à má higiene ou ao uso prolongado, pode criar microtraumas na superfície corneana e aumentar o risco de progressão da doença. Por isso, a orientação profissional adequada sobre o uso correto de lentes é fundamental.

Condições associadas

O ceratocone frequentemente se apresenta em associação com outras condições sistêmicas e oculares, requerendo uma abordagem mais ampla no diagnóstico e tratamento.

  • Síndrome de Down: Incidência até 15 vezes maior de ceratocone, exigindo acompanhamento precoce
  • Síndrome de Ehlers-Danlos: Alteração do colágeno que pode afetar a estrutura corneana
  • Síndrome de Marfan: Maior risco devido à fragilidade do tecido conectivo
  • Atopia: Condições alérgicas aumentam significativamente o risco
  • Amaurose congênita de Leber: Frequentemente associada ao desenvolvimento de ceratocone

Diagnóstico moderno do ceratocone

O diagnóstico do ceratocone evoluiu significativamente nas últimas décadas, incorporando tecnologias avançadas de imagem que permitem a detecção precoce e o acompanhamento preciso da progressão da doença. 

A topografia corneana computadorizada e a tomografia de coerência óptica (OCT) do segmento anterior são ferramentas fundamentais neste processo.

A análise biomecânica da córnea através de equipamentos específicos, como o Ocular Response Analyzer (ORA) e o Corvis ST, permite avaliar as propriedades viscoelásticas do tecido corneano, fornecendo informações cruciais sobre a resistência e elasticidade da córnea.

Exames complementares como a paquimetria ultrassônica e a microscopia especular são essenciais para avaliar a espessura corneana e a saúde do endotélio, respectivamente, auxiliando na definição da melhor estratégia terapêutica.

Tratamentos disponíveis e suas indicações

O tratamento do ceratocone deve ser personalizado, considerando fatores como idade do paciente, estágio da doença, progressão, impacto na qualidade de vida e condições associadas, podendo envolver abordagens conservadoras e cirúrgicas.

Abordagens não cirúrgicas

A correção óptica inicial geralmente envolve óculos ou lentes de contato especiais, sendo fundamental a adaptação adequada para garantir conforto e qualidade visual. Em casos iniciais, estas opções podem proporcionar excelente acuidade visual e adiar a necessidade de intervenções cirúrgicas.

Adaptação de lentes especiais

O processo de adaptação de lentes especiais requer avaliação detalhada da topografia corneana e experiência profissional para selecionar o tipo mais adequado de lente. A adaptação é progressiva e pode necessitar de vários ajustes até alcançar o melhor resultado.

A escolha do tipo de lente deve considerar não apenas a correção visual, mas também o conforto do paciente, sua rotina diária e capacidade de manejo das lentes, visando garantir boa adesão ao tratamento.

Tipos de lentes de contato

As lentes de contato para ceratocone variam em material, design e tecnologia, cada uma com características específicas para diferentes estágios da doença.

Tipo de LenteIndicaçãoVantagensDesvantagens
RGPCasos leves a moderadosExcelente qualidade visualMenor conforto inicial
EscleraisCasos avançadosMáximo confortoCusto elevado
HíbridasCasos moderadosConforto e boa visãoDurabilidade menor
PiggybackIntolerância à RGPMaior confortoMaior complexidade

Procedimentos cirúrgicos modernos

Os avanços em cirurgia oftalmológica trouxeram novas possibilidades para o tratamento do ceratocone, com procedimentos menos invasivos e mais efetivos que visam tanto estabilizar a progressão da doença quanto melhorar a qualidade visual.

Crosslinking: estabilização da doença

O Crosslinking do colágeno corneano é um procedimento que visa fortalecer as ligações entre as fibras de colágeno da córnea, utilizando uma combinação de riboflavina (vitamina B2) e radiação ultravioleta A controlada.

Durante o procedimento, a camada epitelial da córnea é removida e o olho é saturado com solução de riboflavina. A exposição subsequente à luz UV-A catalisa a formação de novas ligações químicas entre as fibras de colágeno, aumentando a rigidez corneana.

O tratamento é mais efetivo quando realizado nos estágios iniciais da doença, podendo interromper ou retardar significativamente sua progressão. Estudos mostram que mais de 90% dos pacientes apresentam estabilização após o procedimento.

Anéis intracorneanos e transplante

Os anéis intracorneanos são segmentos semicirculares de material biocompatível implantados na média periferia da córnea através de túneis criados com precisão laser. Estes implantes atuam regularizando a superfície corneana e reduzindo as distorções ópticas.

O transplante de córnea (ceratoplastia) permanece como opção para casos avançados onde outras alternativas não proporcionaram resultados satisfatórios. As técnicas modernas incluem transplantes lamelares, que preservam parte da córnea original, reduzindo riscos e melhorando resultados.

Com o advento de novas tecnologias cirúrgicas, como o laser de femtosegundo, os procedimentos tornaram-se mais precisos e seguros, permitindo uma recuperação mais rápida e resultados mais previsíveis.

Prevenção e controle da progressão

A prevenção do ceratocone concentra-se principalmente no controle dos fatores de risco modificáveis, como evitar coçar os olhos e tratar adequadamente condições alérgicas associadas.

O acompanhamento regular com oftalmologista especializado é fundamental, permitindo a detecção precoce de alterações e a intervenção oportuna para controlar a progressão da doença.

A educação do paciente sobre a importância da adesão ao tratamento e dos cuidados preventivos é essencial para o sucesso terapêutico a longo prazo.

O ceratocone pode causar cegueira?

Não diretamente, mas pode causar baixa visão severa se não tratado adequadamente.

Em que idade o ceratocone costuma aparecer?

Geralmente entre 10 e 25 anos, com maior incidência na puberdade.

O ceratocone é hereditário?

Sim, existe componente genético significativo na transmissão da doença.

Posso fazer cirurgia refrativa se tenho ceratocone?

Geralmente não é recomendado, mas existem procedimentos específicos para ceratocone.

As lentes de contato podem piorar o ceratocone?

Não, se adequadamente adaptadas e utilizadas conforme orientação profissional.

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