Acompanhamento do Ceratocone e indicação de crosslinking

O ceratocone é uma ectasia corneana que cursa com encurvamento e afinamento progressivos da córnea e, consequentemente, desenvolvimento de astigmatismo irregular e baixa acuidade visual. Usualmente, é bilateral, assimétrico e apresenta início na segunda década de vida. Tem etiologia multifatorial, tendo influência genética e de fatores ambientais, como o hábito de coçar os olhos.

O tratamento se baseia em dois pilares: acompanhar/impedir a progressão e melhorar a visão. 

A melhora da acuidade visual é obtida com óculos, lentes de contato (gelatinosa, corneana rígida gás-permeável, escleral) ou anel intra-estromal, a depender do estágio da doença e do contexto clínico do paciente. Como última alternativa para reabilitação visual, pacientes com ceratocone avançado podem ter indicação de transplante de córnea. 

A cirurgia depende da doação de tecido, tem risco de intercorrências intraoperatórias, e demanda acompanhamento pós-operatório contínuo para monitorar complicações como rejeição, falência do enxerto e elevação da pressão intraocular. 

Até recentemente, não havia tratamento efetivo para impedir a piora da doença e evitar a necessidade de transplante.

 O crosslinking (CXL) da córnea, proposto em 1998 por Spoerl e Seiler, é o primeiro (e até o momento, único) procedimento que se mostrou efetivo em limitar a progressão do ceratocone, mudando radicalmente a história natural da doença e o prognóstico visual desses pacientes.

Esse tratamento combina uma substância fotoindutora (riboflavina) e luz ultravioleta A (UVA), em reação fotoquímica que leva à indução de espécies reativas de oxigênio e novas ligações covalentes entre as fibras de colágeno estromal e a matriz extracelular, aumentando a rigidez da córnea. A técnica, universalmente aceita por sua eficácia, tem baixas taxas de complicação.

Como acompanhar a progressão do ceratocone?

Com a introdução do crosslinking nas estratégias de tratamento do ceratocone, determinar se a doença está progredindo tornou-se fundamental. Entretanto, ainda não existe consenso em relação à definição de progressão, o que explica a diversidade de índices apresentados na literatura para este fim. 

Um dos estudos mais importantes, que contribuiu para a aprovação do CXL pela Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos, foi realizado em nome do United States Crosslinking Study Group e publicado em 2017. Nesse estudo, progressão de ceratocone foi definida como uma ou mais das seguintes alterações durante um período de 24 meses:

aumento ≥ 1,00 D na ceratometria (K) mais curva (K2);

aumento ≥ 1,00 D no cilindro manifesto;

ou aumento ≥ 0,50 D no equivalente esférico da refração manifesta.

A ceratometria diz respeito à medida das curvaturas da córnea, medidas por aparelhos específicos como a topografia e a tomografia de córnea.

Além disso, muitos estudos definem como critério para progressão uma ou mais das seguintes alterações durante um período de 12 meses:

aumento ≥  1D no K máximo (Kmáx) e/ou mais curvo (K2) e/ou médio (Km);

alteração de 0,5 D no equivalente esférico manifesto;

afinamento ≥  2% ou 30 µm na espessura central da córnea.

Considerando a dificuldade e variabilidade da refração nos pacientes com ceratocone, é aconselhável privilegiar os dados ceratométricos (curvatura da córnea) e paquimétricos (espessura da córnea), além da avaliação clínica e acompanhamento da acuidade visual com e sem correção. A análise combinada de múltiplos parâmetros é indicada na melhor identificação de pacientes que podem se beneficiar do crosslinking, especialmente em pacientes com ceratocone avançado, já que a previsibilidade e reprodutibilidade das medidas diminui à medida que a gravidade da doença aumenta.

Em relação a periodicidade do acompanhamento, de forma geral, em pacientes menores de 18 anos é indicado o acompanhamento a cada 3 meses, a depender da gravidade do ceratocone e contexto clínico. Entre os 18 e os 30 anos, parece razoável realizar o acompanhamento a cada 6 meses, a menos que sejam identificados fatores de risco para progressão, como gravidez ou alergia ocular sem controle adequado. 

Após os 30 anos, caso a doença esteja estável e não existam sinais de alerta, é possível realizar o acompanhamento anualmente. Isso ocorre porque a córnea torna-se menos propensa a aumentar sua curvatura e/ou sofrer afinamento com o passar dos anos. Assim, durante a adolescência, período mais crítico de possível progressão do ceratocone, é importante o acompanhamento mais de perto.

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Quando indicar o Crosslinking?

A indicação formal de realização do crosslinking é a progressão documentada do ceratocone. 

Entretanto, em alguns pacientes, esperar pela progressão pode ser mais arriscado do que realizar crosslinking sem progressão documentada. Nesse sentido, muitos autores indicam o procedimento no momento do diagnóstico em pacientes menores de 18 anos, já que essa população comprovadamente apresenta alto risco de progressão. 

Além da idade, são fatores de risco para progressão que não podem ser controlados:  ceratometria máxima maior que 55D no momento do diagnóstico; fatores genéticos; doenças do tecido conjuntivo, como síndrome de Ehlers-Danlos; síndrome de Down; amaurose congênita de Leber; síndrome de Turner. Entre os fatores de risco que podem ser controlados, estão a inflamação e a fricção dos olhos, que aumenta o risco de progressão da doença. 

Uma análise individualizada dos fatores de risco para progressão do ceratocone deve ser realizada e nossa capacidade de controlá-los deve ser considerada no planejamento terapêutico. Além disso, deve-se sempre considerar se será possível realizar o acompanhamento próximo do paciente, especialmente em pacientes com alto risco de progressão. 

Recomenda-se aguardar progressão documentada nos casos em que o acompanhamento próximo é possível. Já em pacientes que apresentam fatores de risco que não podem ser controlados e modificados  ou se o acompanhamento periódico for impossível, pode-se indicar o crosslinking desde o início.

Pacientes com acuidade visual de 20/25 ou melhor, em qualquer idade, podem optar apenas por acompanhamento da doença, pois o crosslinking também apresenta complicações possíveis e pode cursar com piora da visão. 

Especificamente em crianças, que ainda apresentam adequada visão, o objetivo e as potenciais complicações de um eventual tratamento cirúrgico devem ser discutidos e pesados, antes de determinar qualquer conduta.

Como é realizado o procedimento?

O primeiro protocolo de tratamento proposto, chamado de padrão ou Dresden, envolve a desepitelização da córnea central (7-9mm), e instilação de riboflavina 0.1% com dextran 20% a cada 2 minutos por aproximadamente 30 minutos. A desepitelização tem como objetivo a melhor penetração da riboflavina, que é hidrofílica e tem alto peso molecular. Em seguida, a córnea é exposta a radiação UVA em comprimento de onda de 365 a 370 nm e irradiação de 3 mW/cm2 por 30 minutos (energia total de 5.4 J/cm2), com reaplicação da riboflavina a cada 5 minutos.

O protocolo de Dresden especifica que é necessária espessura corneana mínima de 400 μm após o desbridamento epitelial para que se assegure a segurança das células endoteliais. Esta medida foi feita com base em cálculos de difusão de riboflavina e quantidade total de energia UV que atinge a córnea.

A eficácia do protocolo padrão em interromper a progressão do ceratocone foi validada por vários estudos de curto e longo prazo, com até 10 anos de acompanhamento. Ainda assim, buscando maximizar a eficácia, segurança e conforto do tratamento, modificações no protocolo padrão são continuamente objeto de estudos científicos. Os principais objetivos são evitar a desepitelização da córnea e/ou diminuir o tempo de tratamento.

Em 2005, Kanellopoulos propôs o uso de irradiâncias mais altas do UVA para diminuir o tempo de irradiação, mantendo-se a energia total do tratamento (assumindo que a lei de Bunsen-Roscoe, que determina a relação entre a intensidade de luz e o tempo de exposição para a ocorrência de um evento fotoquímico, se aplicaria). O termo “Crosslinking acelerado” foi cunhado para qualquer irradiação mais curta, e atualmente estão disponíveis irradiâncias de 3 até 30 mW/cm². 

Entretanto, verificou-se que a disponibilidade de oxigênio é um fator limitante para a aplicação da lei de Bunsen-Roscoe no crosslinking. Apenas até 9 mW/cm2 de irradiância, totalizando 10 minutos de tratamento, é que foram verificadas mudanças biológicas suficientes para obter efeito biomecânico similar ao do protocolo padrão.

Dessa forma, o protocolo acelerado mais utilizado consiste na instilação, após a desepitelização, da riboflavina 0.1% com hidroxipropil metilcelulose (HPMC) a cada 2 minutos por aproximadamente 10 a 16 minutos. Em seguida, a córnea é exposta a radiação UVA com irradiação de 9 mW/cm2 por 10 minutos (energia total de 5.4 J/cm2), com reaplicação da riboflavina no meio do tratamento.

Técnicas que mantêm o epitélio (“epitélio-on” ou transepitelial) também foram testadas como alternativa para evitar dores e complicações pós-operatórias como infecções. A dificuldade com o epi-on crosslinking é dupla: (1) o epitélio representa uma barreira de difusão para a riboflavina e (2) o epitélio tem alto consumo de oxigênio. 

Dessa forma, mesmo que uma técnica epi-on consiga fornecer saturação adequada de riboflavina do estroma, manter o epitélio resulta não apenas em uma atenuação de aproximadamente 20% da energia UV que atinge o estroma, mas também em limitação da difusão de oxigênio no interior do tecido estromal. Esses fatores podem explicar o fato de que vários protocolos CXL transepiteliais não foram capazes de interromper a progressão do ceratocone de forma tão eficaz quanto o protocolo de Dresden.

O que fazer em pacientes com córneas finas?

O protocolo de Dresden determina espessura corneana mínima de 400 μm após o desbridamento epitelial para segurança do procedimento. Essa limitação exclui muitos pacientes que poderiam se beneficiar do procedimento. 

Desde 2009, foram desenvolvidas várias modificações no protocolo de Dresden para superar essa limitação. Essas técnicas visam alterar a espessura do estroma de forma a possibilitar um tratamento seguro e eficaz. Uma das opções é a utilização da riboflavina hiposmolar (200 mOsm), que causa aumento da espessura do estroma no intraoperatório devido às propriedades hidrofílicas dos proteoglicanos do estroma. Após desepitelização e a instilação da riboflavina, a paquimetria corneana deve ser verificada quanto ao limite de segurança de 400 μm. 

Essa alternativa mostrou-se eficaz em casos com paquimetria pré-operatória de 320 μm ou mais. Outra opção é o CXL assistido por lente de contato (CACXL), no qual o estroma é artificialmente “espessado” com a colocação de uma lente de contato sobre a córnea durante o procedimento. O método é indicado para córneas com paquimetria de 350–400 μm após a remoção epitelial. 

Uma terceira abordagem tem sido deixar ilhas de epitélio sobre as áreas mais finas do estroma corneano. Apesar de todas as três serem promissoras, cada uma dessas técnicas tem grandes limitações e, por isso, não foram padronizadas. 

Recentemente, Hafezi e colaboradores desenvolveram um algoritmo (protocolo sub400) que individualiza as configurações de irradiação com base na espessura mínima da córnea de cada paciente ao final da instilação da riboflavina, objetivando realizar crosslinking efetivo sem prejuízo ao endotélio. 

Dessa forma, ao invés de modificar artificialmente a espessura da córnea, o protocolo sub400 adapta a energia UV-A total à espessura do estroma individual do paciente. Segundo os autores, essa técnica permite o tratamento de córneas com até 325 μm de espessura com epitélio no pré-operatório.

Quais os riscos do Crosslinking?

Ao longo dos mais de 20 anos desde a sua criação e desenvolvimento, o crosslinking passou de uma técnica experimental para o padrão global de tratamento para o ceratocone. Apesar de seguro para crianças e adultos, esse procedimento ainda pode apresentar complicações ou respostas inesperadas.

Um haze leve (que não afeta a visão) geralmente aparece após o procedimento. Por esse motivo, há um debate sobre se o haze deve ser visto como um achado normal ou considerado uma complicação que poderia causar perda de qualidade visual.

Outro ponto relevante diz respeito à desepitelização, que pode estar relacionada a dor pós operatória, defeito epitelial persistente e ceratite infecciosa. Além disso, é descrita a ocorrência de infiltrados estéreis, relacionados ao efeito fototóxico e alterações de antigenicidade em proteínas nativas. Finalmente, a reativação do herpes pode ser desencadeada pela luz UV mesmo em indivíduos sem histórico aparente de infecções oculares clínicas pelo vírus do herpes.

Referências:

  1. Santhiago MR. Cross-linking da córnea: protocolo padrão. Rev bras oftalmol 2017; 76(1): 43-9. doi: 10.5935/0034-7280.20170010
  2. Beckman KA, Gupta PK, Farid M, Berdahl P, Yeu Elizabeth, Ayes Brandon, Chan CC, Gomes JAP, Holland EJ, Kim T, Starr CE, Mah FS, the ASCRS Cornea Clinical Committee. Corneal crosslinking: Current protocols and clinical approach. J Cataract Refract Surg 2019; 45(11):1670-79. doi: 10.1016/j.jcrs.2019.06.027
  3. Spoerl E, Seiler T. Techniques for Stiffening the Cornea. Journal of Refractive Surgery 1999; 15:711–3.
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  6. Izquierdo L, Henriquez M, Mannis M. Keratoconus: Diagnosis and Management. 1st ed. Elsevier; 2022.
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