O caso de Ashton Kutcher: entenda o que são vasculites e conheça a Síndrome de Cogan

Em uma gravação para o programa “Running Wild With Bear Grylls: The Challenge”, do canal National Geographic’s, o famoso ator norte-americano Ashton Kutcher revelou ao mundo que há 2 anos foi diagnóstico com Síndrome de Cogan.

“Não sei se voltarei a enxergar algum dia, não sei se voltarei a ouvir, não sei se voltarei a andar”, pensava o ator à época dos sintomas (livre tradução); “Tenho sorte por estar vivo”, acrescentou o famoso. Hoje, ele refere estar assintomático e ter recuperado suas funções anteriormente comprometidas. Porém, suas declarações trouxeram ao mundo a discussão do que seria a tal vasculite.

Vasculite é uma inflamação dos vasos sanguíneos do corpo. Dependendo da causa, pode afetar vasos de pequeno, médio ou grande calibre. Este processo patológico costuma evoluir com espessamento da parede vascular e consequente redução do fluxo sanguíneo para os mais variados órgãos do corpo humano, comprometendo assim sua estrutura e função. A vasculite pode ser manifestação de diversas doenças, em geral raras e autoimunes, podendo afetar apenas um ou vários órgãos simultaneamente. Além disso, o quadro pode ser agudo ou crônico.

Alguns exemplos de doenças que cursam com vasculite:

Doença de Behçet;

Doença de Buerger;

Síndrome de Cogan;

Síndrome de Churg-Strauss;

Crioglobulinemia;

Arterite de Células Gigantes;

Poliangeíte com Granulomatose;

Púrpura de Henoch-Schonlein;

Doença de Kawasaki;

Arterite de Takayasu.

Pacientes com vasculites, em geral, apresentam sintomas constitucionais típicos como febre, cefaleia, cansaço, perda de peso e dores pelo corpo. E, dependendo do(s) órgão(s) acometido(s), pode apresentar sintomas mais específicos.

Até o momento de escrita deste texto, Kutcher não revelou ao público qual foi a causa da vasculite que o acometeu. Porém, vamos aproveitar o tema para trazer algumas informações sobre uma condição rara, que cursa com perda visual, auditiva e de equilíbrio, e que costuma ser mais conhecida entre os oftalmologistas: é a Síndrome de Cogan.

O que é a Síndrome de Cogan?

Descrita pela primeira vez por David G Cogan em 1945 como uma síndrome caracterizada por “ceratite intersticial não sifilítica e sintomas vestibuloauditivos”, a síndrome de Cogan é uma doença autoimune rara que acomete em geral adultos jovens (entre 14 e 47 anos de idade), na qual o organismo produz auto-anticorpos contra antígenos presentes em estruturas como córnea, orelha interna (cóclea) e endotélio vascular.

Envolvimento sistêmico pode estar presente em até 80% dos casos, sendo caracterizado por perda auditiva, cefaleia, artralgia, febre, artrite e mialgia; 10 a 30% dos pacientes desenvolvem vasculite, podendo resultar em complicações graves como aortite, além de manifestações gastrointestinais e neurológicas.

A causa exata da doença ainda não é conhecida. Porém, alguns relatos na literatura médica sugerem a correlação entre Cogan com alguns eventos desencadeadores (chamados triggers), como infecções virais de via aérea superior, diarreia, infecções odontológicas, ou até imunização recente.

Sintomas da Síndrome de Cogan

Os sintomas de apresentação da doença envolvem o sistema ocular em aproximadamente 40% dos casos, o vestibuloauditivo em 46%, e ambos (olho + audição + equilíbrio) em aproximadamente 15%. Após 5 meses do início do quadro, até 75% dos pacientes poderão apresentar manifestações oftalmológicas, vestibulares e auditivas.

Em termos de sintomas oculares, o paciente poderá procurar o oftalmologista queixando-se de dor/irritação ocular, fotofobia e baixa acuidade visual. Caso o sistema vestibuloauditivo esteja acometido, perda auditiva neurossensorial, zumbido e vertigem estarão presentes. Já a presença de claudicação de membros inferiores pode assinalar vasculopatia sistêmica em curso.

Há dois tipos bem caracterizados da síndrome de Cogan, diferenciados com base nos sintomas de abertura da doença e no acometimento ocular: (1) forma clássica; e (2) forma atípica.

Na Cogan clássica, o paciente apresenta ceratite subepitelial periférica que rapidamente evolui para ceratite intersticial – e neovascularização corneana se não tratada –, além de sintomas vestibuloauditivos (náusea, vômito, zumbido, vertigem), com perda auditiva progressiva que evolui para surdez em 1 a 3 meses. Do ponto de vista oftalmológico, além da ceratite intersticial (principal manifestação oftalmológica da doença), pode haver irite, hiposfagma, lacrimejamento e hiperemia conjuntival, e estes sinais clínicos podem ser uni ou bilaterais. É importante destacar que, na forma clássica, os sintomas vestibuloauditivos surgem em até 2 anos do início do quadro oftalmológico.

Já na forma atípica, o quadro oftalmológico apresenta uma variedade maior de sinais patológicos, incluindo uveíte, episclerite, esclerite (anterior ou posterior), conjuntivite, edema de disco óptico, papilite, neuropatia óptica isquêmica, oclusão de veia central da retina e vasculite retiniana. Podem estar ou não associados a ceratite intersticial, e ossintomas vestibuloauditivos costumam surgir após 2 anos do início do quadro ocular. Além disso, esta forma da doença cursa com manifestações sistêmicas mais frequentes.

Manifestação clínica da Síndrome de Cogan

Por não haver um teste diagnóstico específico para a doença, precisamos primeiramente entender a história clínica e achados patológicos (oculares e sistêmicos) do paciente, aventando a hipótese de Cogan dentro dos possíveis diagnósticos diferenciais. Ou seja, precisamos conhecer a doença, lembrar que ela existe. Além disso, os sinais e sintomas podem não surgir de forma síncrona. Por exemplo, a ceratite intersticial, que é característica da doença, pode surgir meses a anos após o início dos sintomas. Mais ainda, pacientes com sinais sugestivos de Síndrome de Cogan típica (clássica), podem vir a apresentar, ao longo do tempo, outras manifestações clínicas que apontem para o Cogan atípico.

Encontrei ceratite intersticial ao examinar meu paciente. Devo pensar em Cogan?

Devemos lembrar da doença. Porém, seu diagnóstico é de exclusão, e precisamos primeiramente descartar outras causas de ceratite intersticial mais frequentes em nosso meio, como sífilis, herpes e até tuberculose. É importante lembrar que a presença dos sintomas vestibulares e auditivos direcionam nossa hipótese principal para Cogan. Portanto, uma boa anamnese e escuta ativa às queixas do paciente são fundamentais.

Alguns testes laboratorias positivos no contexto desta síndrome têm sido descritos, tais como anti-HSPs (heat shock proteins), ANCA, fator reumatoide (FR), fator antinuclear (FAN), e anticorpo anti-cardiolipina.

Tratamento da Síndrome de Cogan

Trata-se de uma doença que deve ser acompanhada de maneira multidisciplinar pelo oftalmologista, pelo clínico/reumatologista e pelo otorrinolaringologista.

O ponto chave no tratamento inicial são os corticosteroides. Diante de achados oftalmológicos de segmento anterior, como ceratite intersticial ou uveíte anterior, corticoide tópico ou ciclosporina tópica podem ser utilizados.

E quando utilizar corticoterapia sistêmica? Diante de achados oftalmológicos em segmento posterior, como uveíte posterior, vasculite retiniana ou esclerite posterior, por exemplo. Além disso, em pacientes com queixas sistêmicas como perda auditiva, distúrbios vestibulares ou vasculite sistêmica, imunossupressão mais agressiva deve ser considerada, associando-se fármacos antirreumáticos modificadores de doença (DMARDs) ou até agentes biológicos imunossupressores como o anticorpo monoclonal Infliximabe, de uso injetável.

Referências:

1. https://www.washingtonpost.com/lifestyle/2022/08/09/ashton-kutcher-vasculitis-symptoms-covid/

2. https://www.mayoclinic.org/diseases-conditions/vasculitis/symptoms-causes/syc-20363435

3. https://eyewiki.aao.org/Cogan_Syndrome

4. https://www.msdmanuals.com/professional/eye-disorders/corneal-disorders/cogan-syndrome