Há necessidade de profilaxia perioperatória para evitar recorrência de toxoplasmose ocular?

A toxoplasmose ocular é a principal causa infecciosa de uveíte posterior no mundo. A apresentação típica da doença é de retinocoroidite necrotizante unilateral recorrente. Usualmente, a lesão focal de retinite se encontra adjacente a uma cicatriz de infecção prévia e costuma estar associada a vitreíte e vasculite.

RECORRÊNCIA DA TOXOPLASMOSE OCULAR:

A reativação da toxoplasmose ocular ocorre por diversos mecanismos que envolvem fatores imunológicos do paciente, virulência parasitária e fatores externos (como trauma, estresse e cirurgias).

A taxa de recorrência da toxoplasmose ocular é realmente alta e já descrita em alguns estudos: Bosch-Driessen et al. reportou taxa de 79% em 5 anos; uma coorte holandesa avaliou 143 pacientes por 41 anos e identificou 0.2 episódios de recorrência por ano; Pleyer U et al. identificou taxa de 12-15% em dois anos. 1-3.

A recorrência após procedimentos e cirurgias oculares tem sido descrita em alguns estudos. Entretanto, ainda não existe consenso quanto à necessidade e benefício do uso da terapia antiparasitária como forma de profilaxia perioperatória.

Fatores que podem contribuir para a recorrência da doença em um contexto de pós-operatório são: trauma cirúrgico, estresse perioperatório e uso de corticosteroide (local ou sistêmico, durante ou após o procedimento).

COMO PREVENIR A RECORRÊNCIA DE TOXOPLASMOSE OCULAR?

Sulfametoxazol-trimetropim é uma droga que pode ser utilizada como forma de prevenir recorrências. Segundo recente meta-análise de Zhang et al, é a melhor opção terapêutica para prevenção de tal.

Silveira et al. identificou que o uso dessa terapia 1 vez por dia a cada 3 dias por 20 meses reduz o risco de recorrência de 23.8% para 6.6% – o que corresponde a um número necessário para tratar de 5.8. Pleyer U et al. identificou diminuição do risco de 22% para 3% em 3 anos. Felix et al. comparou a incidência de recorrência entre um grupo placebo e um grupo recebendo a profilaxia a cada 3 dias por 1 ano e a redução do risco foi de 12.8% para 0%.3, 5, 6.

EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS QUE DEMONSTRAM BENEFÍCIO DA PROFILAXIA ANTIPARASITÁRIA NO PERIOPERATÓRIO:

Não é incomum realizarmos facoemulsificação de cataratas brancas e sermos surpreendidos no pós-operatório com uma cicatriz inativa de retinocoroidite no fundo de olho. 

Muitas vezes, esses pacientes não são submetidos a profilaxia nem antes nem após a cirurgia e seguem sem reativação da doença; entretanto Bosch-Driessen et al. identificou aumento do risco de recorrência após cirurgia de catarata e sugeriu terapia antiparasitária com intuito profilático antes e após o procedimento, quando tratar-se de paciente que apresenta alto risco de perda visual.7.

Pasmem: até após LASIK, já houve relatos de recorrência da toxoplasmose (Barbara A et al. e Fontaine F et al.). Seria só coincidência? Talvez. Mas imagine ser surpreendido com uma uveíte posterior ativa após cirurgia refrativa? 8, 9.

Hazar L et al. e Souza GM et al. relataram casso de recorrência após vitrectomia. 10,11

A triancinolona é um corticoide utilizado em cirurgia vitreorretiniana já que ela se deposita e facilita a identificação da base vítrea e hialoide posterior. Como existem casos de recorrência da toxoplasmose ocular após injeção intravítrea de corticoesteroides, podemos ver o uso da triancinolona no intraoperaótio como um fator favorável à reativação do parasita.

EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS QUE NÃO DEMONSTRAM BENEFÍCIO DA PROFILAXIA ANTIPARASITÁRIA:

Em série de 4 casos de pacientes com história pregressa de toxoplasmose ocular, sem sinais de atividade há pelo menos 3 meses, que foram submetidos a vitrectomia para tratamento de membrana epirretiniana, em que apenas 1 realizou profilaxia, nenhum dos 4 pacientes apresentou recorrência da toxoplasmose. 12.

Heringer et al. realizou análise retrospectiva do prontuário de 69 pacientes com história de toxoplasmose ocular submetidos a cirurgia intraocular sem profilaxia antiparasitária. A recorrência foi identificada em apenas 4 casos, sugerindo que não há aumento significativo do risco. 

É válido salientar que esse estudo foi realizado na Europa, onde as recorrências de toxoplasmose ocular, além de menos frequentes, são menos graves que na América do Sul. Novos estudos sugerem que as cepas parasitárias sul-americanas são mais agressivas que na Europa e América do Norte.13.

 O QUE FAZER?

Devido à falta de evidências científicas e resultados conflitantes entre os estudos, não há consenso quanto ao uso perioperatório de profilaxia antiparasitária com o objetivo de diminuir risco de recorrência da toxoplasmose ocular.

É consenso que pacientes com história de inflamação intraocular devem aguardar pelo menos 3 meses sem atividade inflamatória para serem submetidos a procedimento cirúrgico ocular. Mesmo respeitando-se esse tempo, profilaxia antiparasitária pode ser indicada em pacientes com alto risco de perda visual.

Além disso, 3 meses sem atividade inflamatória pode ser um tempo insuficiente para garantir baixo risco de reativação para cepas parasitárias muito virulentas. Ademais, talvez a triancinolona não seja a melhor opção de medicamento a ser usada como adjuvante durante uma cirurgia vitreorretiniana de um paciente com história de uveíte posterior.

Para tomada de decisão pré-operatória, é importante enfatizar que as nossas cepas sul-americanas do toxoplasma parecem ser mais virulentas que as cepas europeias e norte-americanas (sendo assim, estudos que foram realizados nesses continentes devem ser analisados por nós de forma bastante crítica). 

Não utilizar a profilaxia tomando como base a literatura científica produzida em países em que as cepas parecem ser menos virulentas pode ser algo trágico aqui na América Latina, onde os casos são mais graves e as recorrências mais frequentes.

Estudos com melhor desenho estatístico são necessários para realmente avaliar o risco de recorrência de toxoplasmose ocular após cirurgias intraoculares e o real benefício da profilaxia antiparasitária. Hoje, o que podemos fazer é individualizar cada caso, levando em consideração o procedimento a ser realizado e o potencial de sequelas visuais caso haja recorrência, sempre explanando os riscos para o paciente.

REFERÊNCIAS

1. Bosch-Driessen LE, Berendschot TT, Ongkosuwito JV, Rothova A. Ocular toxoplasmosis: clinical features and prognosis of 154 patients. Ophthalmology. 2002;109:869–78

2. Holland GN, Crespi CM, ten Dam-van Loon N, et al. Analysis of recurrence patterns associated with toxoplasmic retinochoroiditis. Am J Ophthalmol. 2008;145:1007–13

3. Pleyer U, Ness T, Garweg J. Rezidivprophylaxe bei okulärer Toxoplasmose [Prevention of Recurrence of Ocular Toxoplasmosis – When? How? For Whom?]. Klin Monbl Augenheilkd. 2020 May;237(5):599-604. German. doi: 10.1055/a-1141- 3812. Epub 2020 May 20. PMID: 32434243.

4. Zhang Y, Lin X, Lu F. Current treatment of ocular toxoplasmosis in immunocompetent patients: a network meta-analysis. Acta Trop. 2018 Sep;185:52- 62. doi: 10.1016/j.actatropica.2018.04.026. Epub 2018 Apr 25. PMID: 29704469.

5. Silveira C, Belfort R, Jr, Muccioli C, et al. The effect of long-term intermittent trimethoprim/sulfamethoxazole treatment on recurrences of toxoplasmic retinochoroiditis. Am J Ophthalmol. 2002;134:41–6​

6. Felix JP, Lira RP, Zacchia RS, Toribio JM, Nascimento MA, Arieta CE. Trimethoprim-sulfamethoxazole versus placebo to reduce the risk of recurrences of Toxoplasma gondii retinochoroiditis: randomized controlled clinical trial. Am J Ophthalmol. 2014 Apr;157(4):762-766.e1. doi: 10.1016/j.ajo.2013.12.022. Epub 2014 Jan 3. PMID: 24388839.

7. Bosch-Driessen LH, Plaisier MB, Stilma JS, et al. Reactivations of ocular toxoplasmosis after cataract extraction. Ophthalmology 2002;109:41–45.

8. Barbara A, Shehadeh-Masha’our R, Sartani G, Garzozi HJ. Reactivation of ocular toxoplasmosis after LASIK. J Refract Surg 2005;21:759–761

9. Fontaine F, Fourmaux E, Colin J. Réactivation d’une choriorétinite toxoplasmique après un traitement par LASIK [Reactivation of ocular toxoplasmosis after laser in situ keratomileusis]. J Fr Ophtalmol. 2006 May;29(5):e11. French. doi: 10.1016/s0181-5512(06)73813-x. PMID: 16885818

10. Hazar L, Altan C, Basarır B, Yazıcı AT, Oyur G, Demirok A. Reactivation of ocular toxoplasmosis after pars plana vitrectomy. Retin Cases Brief Rep. 2013 Fall;7(4):368- 70. doi: 10.1097/ICB.0b013e3182964fa5. PMID: 25383807.

11. Souza GM, de Souza CE, Passos RM, Nascimento HMD, Belfort R Junior. Recurrence of Ocular Toxoplasmosis after Vitrectomy: Case Report and Review. Ocul Immunol Inflamm. 2022 Jan 26:1-5. doi: 10.1080/09273948.2022.2026408. Epub ahead of print. PMID: 35081011.

12. Raval V, Rao S, Das T. Anatomical and functional outcomes of pars plana vitrectomy for inflammatory epiretinal membrane surgery in healed toxoplasmosis infection. Indian J Ophthalmol. 2018 Oct;66(10):1485-1489. doi: 10.4103/ijo.IJO_364_18. PMID: 30249848; PMCID: PMC6173008

13. Heringer GC, Oueghlani E, Dell’Omo R, Curi AL, Oréfice F, Pavésio CE. Risk of reactivation of toxoplasmic retinitis following intraocular procedures without the use of prophylactic therapy. Br J Ophthalmol. 2014 Sep;98(9):1218-20. doi: 10.1136/bjophthalmol-2013-304259. Epub 2014 May 12. PMID: 24820044.