Catarata traumática: epidemiologia, propedêutica e tratamento

O cristalino é uma lente biconvexa convergente, com poder médio de +21 dioptrias. Gregos e romanos, na antiguidade, postulavam que a formação da visão era primariamente dada pelo cristalino, que se encontrava no centro do olho. Apesar das descrições muito avançadas acerca da física óptica envolvida no processo visual, muito estudadas por Aristóteles e Galeno, a teoria de transmissão e interpretação da luz mais aceita era de que a formação das imagens acontecia no cristalino, de onde essas então seriam levadas por espíritos visuais que atravessariam o nervo óptico rumo ao cérebro. Tal teoria perdurou por muitos anos e foi abolida apenas no século XVII, pelo histórico astrônomo Johannes Kepler.

Ainda hoje, a catarata é a causa mais comum de cegueira no mundo. Estima-se que cerca de 3 milhões de cirurgias de catarata sejam realizadas nos EUA anualmente, enquanto em países subdesenvolvidos o número caia drasticamente para uma média de 50 cirurgias por milhão de habitantes.

Um importante fator de risco para o seu desenvolvimento é o trauma ocular. As cataratas traumáticas têm como etiologia, em sua maioria, acidentes domésticos ou de trabalho, agressões físicas e acidentes automobilísticos, embora as decorrentes destes tenham diminuído após a implementação da obrigatoriedade do uso de cintos de segurança e a melhoria dos sistemas de colisão ao longo dos anos. É importante salientar que grande parte dos traumas oculares poderia ser evitada pela utilização de equipamentos de proteção individual adequados em atividades com potencial risco, sendo essencial a conscientização da população.

Por ano, 2,5 milhões de traumas oculares ocorrem nos Estados Unidos, sendo responsáveis por cerca de 5% dos atendimentos oftalmológicos. Desses, cerca de 50 mil pacientes ficam cegos, sendo a etiologia mais comum de cegueira unilateral em menores de 45 anos.

O trauma contuso que não penetra a cápsula do cristalino causa, em geral, opacidade subcapsular anterior ou posterior, resultante do edema e espessamento das fibras do cristalino causadas pelo influxo de fluidos e inflamação do tecido. O aspecto resultante pode variar desde opacidades puntiformes ou sem padrão definido, até a famosa catarata em roseta. Além disso, pode-se observar em alguns casos a presença de pigmentos irianos aderidos à cápsula anterior do cristalino, formando o anel de Vossius verdadeiro.

Como curiosidade, atualmente o termo “Anel de Vossius” é descrito pela Academia Americana de Oftalmologia como específico do trauma contuso, embora seja não raramente utilizado na prática clínica para denominar o depósito de pigmentos na cápsula anterior por outras causas, como uveítes.

No trauma contuso ou penetrante com ruptura da cápsula anterior, por sua vez, a hidratação rápida do cristalino leva à sua opacificação. Embora roturas pequenas possam levar a opacidades localizadas, na maioria das vezes há opacificação completa do cristalino.

Choques elétricos e radiação são subtipos traumáticos menos comuns. As cataratas decorrentes de choques elétricos são causadas pela coagulação de proteínas ou mudanças osmóticas súbitas, podendo formar aspecto de trevo típico. A radiação ionizante, como os raios X e tratamentos para tumores oculares, danificam o DNA das células epiteliais capsulares com formação clássica de opacidade posterior, enquanto a radiação não ionizante e o infravermelho causam mais tipicamente opacidade subcapsular pelo aumento localizado do pigmento do epitélio da íris, em pacientes com exposição crônica a altas temperaturas.

Segundo o maior banco de dados de traumas oculares graves, o USEIR (United States Eye Injury Registry), cerca de metade dos traumas oculares de alta intensidade envolve o cristalino. Destes, 48% afetam também o segmento posterior, o que torna mandatória sua avaliação minuciosa em traumas de alta energia. No entanto, tal avaliação, bem como a do próprio cristalino, pode ser dificultada pelo edema corneano, presença de fibrina ou sangue na câmara anterior e dilatação pupilar pobre, sendo por vezes necessária o auxílio da propedêutica complementar com exames de imagem, como a ultrassonografia.

A abordagem primária do cristalino é fortemente recomendada em casos de ruptura de cápsula, presença de material cristaliniano na câmara anterior, glaucoma facomórfico e demais condições que denotam alto risco de inflamação ou aumento da pressão intraocular exacerbados, causando perda visual rápida. Outra possível indicação de facectomia precoce é o trauma em crianças, pelo risco de ambliopia. Nos demais casos, advoga-se por aguardar o arrefecimento do processo inflamatório, ainda que seja necessário novo processo cirúrgico e anestésico.

Há, ainda, o debate entre a implantação da lente intraocular no mesmo ato cirúrgico versus a fixação secundária, sendo formalmente contraindicada em traumas com globo ocular aberto, pelo risco de endoftalmite, bem como em pacientes menores de 2 anos. Ademais, a dificuldade de se obter uma biometria correta na urgência e o aumento de complicações relacionadas à opacificação da lente devem ser pesadas na escolha do melhor momento para a colocação da lente intraocular.

Dentre as dificuldades cirúrgicas estão, por exemplo, a fragilidade capsular e zonular, hiperidratação do cristalino, aumento da pressão intraocular e alteração da fluídica intraoperatória, prolapso vítreo, hifema e sinequias irianas ou iridodiálise. Assim, o domínio de técnicas operatórias diversas e uso de dispositivos auxiliares como anéis de tensão capsular e ganchos ou anéis de íris são de grande valia para o cirurgião. Torna-se essencial a expertise na escolha da técnica primária entre facoemulsificação ou extração intra/extracapsular, de acordo com as condições anatômicas, evitando maiores complicações. Se optada pela primeira técnica, sugere-se a adoção de parâmetros baixos e pouco agressivos (“slow phaco”).

Deve-se atentar ainda à necessidade de cirurgia combinada com vitrectomia, em especial em pacientes jovens, devido à elevada incidência de lesões retinianas tardias relacionadas ao trauma, em parte explicada pela forte aderência vítrea à cápsula posterior do cristalino. Apesar da porcentagem variável entre estudos, May e Kuhn encontraram rotura de cápsula posterior em 23% dos pacientes com traumas acometendo o cristalino, bem como incidência de prolapso vítreo intraoperatório em 45% da amostra.

O seguimento pós operatório é essencial para detectar e tratar precocemente complicações decorrentes do trauma como roturas e descolamento de retina, glaucoma, deslocamento da lente intraocular e alterações corneanas, como também para a programação de cirurgias subsequentes de acordo com a necessidade, na tentativa de reabilitação visual. Em abordagens primárias de urgência, deve-se atentar ao controle da inflamação e elevação da pressão intraocular, inclusive com o uso de anti-inflamatórios e corticoides por via oral.

Assim, percebe-se a importância do trauma ocular como etiologia da catarata e suas peculiaridades de diagnóstico, tratamento e possíveis complicações. Devido à heterogeneidade de apresentações clínicas, há grande divergência na literatura acerca do tema, sendo vitais a avaliação pré-operatória minuciosa e a expertise do cirurgião para a escolha do tratamento personalizado, na tentativa de maximizar a possibilidade de manutenção da arquitetura do globo ocular e recuperação da função visual.

Figura 1. Catarata traumática – iluminação indireta. Foto gentilmente cedida pelo Dr. Flávio Fowler (Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo).

Catarata Traumatica

Figura 2. Catarata traumática – corte óptico. Foto gentilmente cedida pelo Dr. Flávio Fowler (Escola Paulista de Medicina – Universidade Federal de São Paulo).

Referências:

American Academy of Ophthalmology – Basic and Clinical Science Course 2020-2021 series: Section 11 – Lens and Cataract.

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