Degenerações Corneanas, como avaliá-las?

Já dizia o sábio, assunto não se esgota, se discute. Sugere-se com esse artigo propor um apanhado do que é presente no dia a dia, mas sem perder o intuito de também revisar o tema. 

O próprio nome já resume, degenerar remete a degradar, envelhecer, ação primordial do tempo, sol e vento… 

A degenerações corneanas representam na maioria das vezes uma resposta do órgão a própria idade, sendo dessa forma mais comuns nos pacientes mais idosos, não possuindo necessariamente um fator genético associado. No entanto, algumas degenerações apresentam fator de depósito (acúmulo) de substâncias no tecido corneano ou representam uma resposta estrutural a uma agressão.

Para iniciar o tema é sempre importante partir da definição do principal diagnóstico diferencial das degenerações, as Distrofias.

Degenerações x Distrofias

É sempre importante ter em mente que as degenerações corneanas precisam ser inicialmente diferenciadas das distrofias corneanas, assunto  já abordado em post específico aqui no Blog da Eyecare Health.

Desse modo, é importante definir as principais diferenças relativas às duas patologias, para buscar o melhor diagnóstico, tratamento e seguimento.

O quadro abaixo resume essas diferenças:

DegeneraçõesDistrofias
Opacidade periférica localizadaOpacidade em geral localizada ao centro da córnea
Podem ser bilaterais, entretanto de forma assimétricaÉ bilateral e simétrica
Presente em pacientes mais idosos podendo ter relação com uma doença específicaCaráter hereditário, presente no início da vida
Progressão pode ser rápida ou devagarProgressão geralmente é devagar

Classificação

Segundo o conselho brasileiro de Oftalmologia as degenerações corneanas podem ser subdivididas em: alterações involutivas, depósitos e afinamento corneano marginal. Optamos por segmentar nessa proposta de divisão do tema, mas nada impede, como é feito por exemplo pela Academia Americana de Oftalmologia , de abordá-las baseadas na camada corneana acometida.

4.1 Alterações Involutivas

Arco senil ou Arco corneal ou Gerontóxon:

Por se tratar de uma degeneração involutiva, está presente em 60% das pessoas entre 50 e 60 anos de idade e até 100% das pessoas acima dos 80 anos.

Consiste em um depósito de lipídios (colesterol e fosfolipídeos) em estroma periférico, bilateral. De etiologia não totalmente elucidada, pode ter estreita relação com quadros de dislipidemia e hiperlipidemia, sendo particularmente comum em pessoas com hipercolesterolemia familiar e xantelasma (lesão dermatológica periorbitária comum nos pacientes com colesterol alto). Dessa forma possui como fatores de risco além da idade avançada a presença de distúrbios lipídicos sistêmicos, sexo masculino, tabagismo, hipertensão sistólica e herança afro-americana.

A deposição de lipídios ocorre na córnea periférica com início nas regiões superior e inferior da córnea, que possuem maior perfusão do que a córnea central. Com a progressão é formado o halo ou arco senil  em toda periferia corneana.

Em alguns pacientes ocorre o arco senil unilateral que tem tem sido associado à hipotonia ocular, estenose da artéria carótida ou suprimento vascular craniano assimétrico.

O diagnóstico é clínico, feito na lâmpada de fenda. Uma faixa amarela esbranquiçada é notada circunferencialmente na forma de uma faixa branco-mate ou branco-amarelada com cerca de 1 mm de largura. Não cora com a fluoresceína. 

Os pacientes podem ser acompanhados em intervalos anuais, como seria esperado para acompanhamento em um paciente com exame oftalmológico normal. Não há necessidade de manejo específico. 

Arco senil

Imagem do Acervo pessoal Dr Daniel Caiado

Cinta ou Arco limbar de Vogt

Assim como o halo senil, está presente em mais de 55% dos indivíduos acima de 40 e 60 anos e possui como um dos principais fatores de risco a exposição solar. Consiste em um depósito subepitelial, caracterizado como faixas límbicas esbranquiçadas em crescente, localizadas no limbo interpalpebral na forma de manchas em aspecto de giz, em geral localizadas às 3 e 9 horas. 

Não há comprometimento da acuidade visual do paciente, bem como não há tratamento específico, sendo indicado somente o acompanhamento.

Arco Limbar de Vogt em posição atípica

Imagem gentilmente cedida pelo Dr Ulisses Tournier Boppré Fundação Banco de Olhos de Goiás – FUBOG

Córnea farinácea

Trata-se de uma alteração corneana degenerativa relacionada à idade. Entretanto, o que a difere das outras patologias já citadas é seu caráter genético.

Os fatores de risco genéticos incluem qualquer uma das pelo menos seis mutações do gene STS. Acredita-se que diferentes mutações deste gene podem resultar em vários fenótipos distintos, refletindo um grau de expressividade variável. 

Esta entidade apresenta-se com inúmeras opacidades finas, hiper-refletivas e cinza-esbranquiçadas que se distribuem difusa e uniformemente no estroma corneano central posterior, área também denominada membrana pré-Descemet, melhores visualizadas e retroiluminação

Apresenta-se clinicamente de forma bilateral e central, entretanto sem grandes repercussões na acuidade visual. 

A análise histológica evidencia a presença de depósitos de lipofucsina, um pigmento que se deposita com o avançar da idade.

Também não há tratamento específico.

Degeneração em Mosaico – Shagreen

Classicamente se apresenta como opacidades poligonais simétricas bilaterais dentro do estroma posterior central da córnea. As opacidades têm bordas indistintas com espaços claros intermediários. O padrão se assemelha a “pele de crocodilo”, o que justifica o nome da patologia. Em geral a acuidade visual se encontra preservada.

Achados corneanos semelhantes foram descritos com coloração de fluoresceína após eventos compressivos corneanos como: tamponamento por pressão, hipotonia ocular, achatamento da córnea com ceratocone por lentes de contato duras, ceratopatia em banda e megalocórnea ligada ao cromossomo X. 

Assim como nas outras não há conduta específica, somente o seguimento.

Crocodile Shagreen

Imagem gentilmente cedida pelo Dr Ulisses Tournier Boppré Fundação Banco de Olhos de Goiás – FUBOG

As degenerações corneanas compõem um grande grupo de alterações da superfície ocular. Para conferir outros tipos muito comuns na prática oftalmológica diária, que podem ter repercussões importantes para a qualidade de visão do paciente.

As Degenerações corneanas compreendem um grande grupo de alterações muito comuns, divididas entre alterações relacionadas ao envelhecimento, deposições de substâncias na córnea e alterações na margem corneo-escleral.

Seguindo a revisão de degenerações corneanas, iremos abordar tipos muito comuns na prática oftalmológica diária, que podem ter repercussões importantes tanto para a qualidade de visão do paciente, como na minuciosa avaliação corneana pré operatório de diversas cirurgias, como por exemplo a facoemulsificação.

4.2 Degenerações corneanas relacionadas a depósitos:

Ceratopatia em faixa

A ceratopatia em banda é caracterizada pela presença de  finos depósitos de cálcio subepiteliais, na camada de Bowman e no estroma anterior.

É tipicamente uma opacidade horizontal em forma de faixa que cresce da córnea periférica , com início às 3 e 9h e que progride em direção à córnea central. A coloração da faixa se torna branca como giz conforme vai evoluindo e apresenta pontos sem deposição nas áreas dos nervos da córnea. 

A fisiopatologia da ceratopatia em banda depende da causa subjacente que pode levar ao desenvolvimento de degeneração da córnea e deposição de cálcio. Qualquer insulto à córnea pode levar ao desenvolvimento da ceratopatia em banda, seja por doença sistêmica, inflamação crônica, lesão direta ou indireta, exposição a determinadas substâncias ou até mesmo uso de medicamentos.

A etiologia é variável,sendo algumas das causas possíveis as uveítes em crianças, ceratites,  distúrbios metabólicos, sarcoidose, exposição a exposição a vapores ou conservantes de sais de fenilmercúrio, além de causas hereditárias e idiopáticas.

Os sintomas mais frequentes são a redução da acuidade visual, fotofobia, sensação de corpo estranho e irritação ocular.

O diagnóstico é clínico, e o achado autoriza a investigação de causas sistêmicas.

O tratamento clínico é baseado na compensação sistêmica da doença de base. O uso de sintomáticos como lubrificantes artificiais na forma de colírio ou gel são também indicados.

A realização do tratamento cirúrgico otimiza a melhora visual e pode levar ao alívio sintomático.

Para remover os depósitos, as áreas afetadas podem ser raspadas com uma lâmina de bisturi e, em seguida, tratadas com esponja ou papel de filtro embebido em ácido etilenodiaminotetracético (EDTA) a 3%. A depender da extensão a ser desbridada o procedimento pode ser realizado tanto de forma ambulatorial como também em centro cirúrgico.

No pós-operatório é indicada a colocação de lentes de contato terapêutica para alívio da dor e para fornecer suporte à reepitelização corneana, associado a colírio de antibiótico para prevenir infecções. 

Ceratopatia em faixa em paciente com Phthisis bulbi – Imagem do acervo pessoal do Dr Daniel Caiado.

Degeneração esferoidal

Ceratopatia climática em gota, elastose corneal, Degeneração corneal nodular de Bietti, ceratopatia Labrador, degeneração corneal do esquimó são alguns dos sinônimos que existem para caracterizar essa doença

Esse tipo é caracterizado por glóbulos homogêneos, translúcidos, finos, amarelo-ouro, similares a “gotas de azeite” de tamanhos variados, localizados no estroma superficial da córnea, podendo se localizar até no epitélio de acordo com o grau de evolução do quadro.

A irritação física da superfície da córnea causada pelo ambiente, como areia, luz ultravioleta, vento e queimaduras de solda foi associada ao desenvolvimento e à progressão da degeneração esferoidal.

A maioria dos pacientes é não apresenta sintomas. Quando as lesões envolvem a córnea central, os pacientes podem se queixar de redução da acuidade visual.

O prognóstico geralmente é bom e a maioria dos pacientes não requer tratamento. Apenas casos graves que afetam a visão precisam ser tratados. Os tratamentos podem incluir ceratectomia superficial, ceratectomia fototerapêutica, ceratoplastia lamelar ou ceratoplastia penetrante .

Anel branco de Coats

O anel branco de Coats consiste em uma pequena área circular ou oval (1 mm ou menos de diâmetro), de pontos brancos acinzentados discretos, vistos no estroma superficial da córnea e representando restos fibróticos contendo ferro de um corpo estranho metálico. Uma vez que essas lesões amadureçam e estejam livres de qualquer inflamação associada, elas não mudam; portanto, a terapia com corticosteroides ou outros agentes anti-inflamatórios não é indicada.

Anel branco de coats ao redor das lesões corneanas fruto de um trauma por explosão

 Imagem acervo pessoal Dr Daniel Caiado 

Degeneração Nodular de Salzmann

Apresenta como característica a presença de nódulos elevados branco-acinzentados medindo 1-3 mm, localizados próximo ao limbo ou na periferia média da córnea.

Geralmente são relacionados a distúrbios inflamatórios crônicos de superfície ocular, das mais diversas causas, sendo a disfunção da glândula meibomiana a condição coexistente mais comum, bem como flictenulose, ceratoconjuntivite primaveril, ceratite intersticial, tracoma, escarlatina, sarampo, blefarite crônica, triquíase, trauma ocular anterior, e até doença de Crohn. Entretanto, pode estar presente de forma idiopática (sem causa exata definida após investigação).

Esses pacientes geralmente apresentam perda de visão gradual e indolor, epífora, fotofobia e sensação crônica de corpo estranho.

O tratamento conservador clínico envolve o manejo da etiologia potencialmente subjacente (se conhecida), além de lubrificação ocular, colírios esteróides, compressas mornas e higiene adequada das pálpebras.

As indicações cirúrgicas incluem desconforto ocular (ou seja, geralmente uma “sensação de corpo estranho”) e acuidade visual reduzida devido a astigmatismo irregular.

Degeneração nodular de salzman

Imagem gentilmente cedida pelo Dr Ulisses Tournier Boppré Fundação Banco de Olhos de Goiás – FUBOG

Deposição de ferro

A maioria das linhas de ferro está relacionada a anormalidades do acúmulo lacrimal devido a irregularidades da superfície ocular. 

Um anel de Fleischer, representando a deposição de ferro no ceratocone, é uma das muitas linhas de ferro da córnea associadas a irregularidades epiteliais. Este anel é extremamente útil como sinal diagnóstico em casos leves ou iniciais de ceratocone. 

A mesma deposição ocorre em casos de pterígios com tempo maior de evolução. Localizado em geral na porção mais corneana do pterígio, e recebe o nome de Linha de Stocker.

Existem outras linhas de ferro que podem ser visualizadas a depender das alterações da superfície corneana. Todas são encaradas como achado, não influenciando na acuidade visual do paciente e não motivando conduta terapêutica. 

Linha de Stocker

Imagem acervo pessoal Dr Daniel Caiado

4.3 Afinamentos corneanos marginais

Degeneração marginal de Terrien

De etiologia desconhecida, causa um adelgaçamento periférico da córnea não inflamatório, lentamente progressivo, unilateral ou bilateral assimétrico e está associada à neovascularização, opacificação e deposição de lipídios na córnea. A degeneração pode levar a um alto grau de astigmatismo contrário à regra ou oblíquo.

A degeneração marginal de Terrien é geralmente observada em pacientes de 20 a 40 anos de idade, embora possa se manifestar na infância. É mais comum em homens do que em mulheres (3:1).

O epitélio pode ser normal, espessado ou afinado. A membrana de Bowman geralmente está ausente ou degenerada. Afinamento e quebras ocasionais podem ser vistos na membrana de Descemet

Geralmente nenhum tratamento é necessário, a menos que ocorra perfuração ou risco de perfuração iminente. O tratamento conservador inicial para o astigmatismo grave inclui o uso de óculos ou lentes de contato rígidas permeáveis ​​a gases. O adelgaçamento subjacente da córnea deve ser monitorado cuidadosamente.

Dellen

Foi descrita pela primeira vez como escavações rasas em forma de pires na margem da córnea. Acredita-se que ocorra devido à instabilidade localizada do filme lacrimal, especialmente na camada de mucina.

A deficiência na lubrificação que origina o dellen pode ser causada por inflamação crônica ou alterações estruturais que  impedem a correta difusão da lágrima na superfície corneana. Pode ainda estar associada a estados oculares pós-cirúrgicos, bem como ao uso crônico de lente de contato. 

O paciente em geral irá se queixar de desconforto ocular, vermelhidão e sensação de corpo estranho.

O tratamento perpassa pelo controle o da causa base, quando existente, bem como pelo uso de lubrificantes oculares na forma de colírios e ou pomadas.

Dellen pós pterígio

Imagem gentilmente cedida pelo Dr Ulisses Tournier Boppré Fundação Banco de Olhos de Goiás – FUBOG

CONCLUSÃO

Assim, é notável que podem existir diversas alterações na córnea em decorrência de motivos variados, mas nem todos precisam de um tratamento específico ou definem uma condição potencialmente grave. Dessa forma, uma avaliação minuciosa regular com médico oftalmologista é importante para diagnosticar e distinguir alterações da superfície ocular, possibilitando a melhor conduta para cada caso.

  1. Referências

1- Academia Americana de Oftalmologia

2- Série de Volumes – Conselho Brasileiro de Oftalmologia